Rui Car
07/09/2022 09h23

Bicentenário: Qual a importância do Grito do Ipiranga para a independência?

Pesquisadores revelam como a historiografia hoje trata o acontecimento escolhido para ser o marco da independência do Brasil

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Quadro "A proclamação da independência", feita sob encomenda do Senado pelo francês François-Rene Moreaux (1844) — Foto: Museu Imperial de Petrópolis / Reprodução

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Por muito tempo, conservou-se no Brasil uma história de que o principal marco da independência do Brasil teria acontecido às margens do riacho do Ipiranga, na então pequena vila de São Paulo, no dia 7 de setembro de 1822. Ao receber cartas da princesa Leopoldina e do mentor José Bonifácio, relatando um ultimato das cortes portuguesas para que retornasse a Portugal, dom Pedro teria gritado junto à sua comitiva: “Independência ou morte!”

 

Mas hoje o trabalho dos historiadores e professores de história não é mais pela divulgação desse acontecimento que costumava elevar a figura do príncipe como herói da emancipação do país. A historiografia atualmente trabalha pela desmistificação do fato, para que os brasileiros compreendam que o processo de independência não envolveu apenas um homem nem sequer dependeu do ocorrido às margens do Ipiranga. 

 

Ninguém pode afirmar ao certo quais foram as palavras de dom Pedro naquele 7 de setembro, o que realmente aconteceu ali às margens do riacho. Mas o que todos sabem é que houve toda uma construção simbólica posterior para que o caso se tornasse um grande acontecimento político. 

 

A real importância do ‘Grito do Ipiranga’ para o processo de independência do Brasil está no plano antes da memória do que da história. A partir de 1823, mas principalmente a partir do final do século 19, esse grito se transformou em um verdadeiro símbolo da independência. Ele não descreve um acontecimento real, ele não possui representações precisas acerca do que foi realmente a independência”, explica João Paulo Pimenta, professor da USP e organizador do recém-lançado livro “E Deixou de Ser Colônia” (Editora Almedina Brasil). 

 

Em 1823, o Grito do Ipiranga já era elevado a um acontecimento importante no processo de independência, mas só ganhou status de maior marco do processo durante o Segundo Reinado, quando o Brasil e outros países passaram a compreender a importância da construção de símbolos nacionalistas para engajar e unir a população.

 

Um dos principais motivos para ter sido escolhido entre os muitos acontecimentos que fizeram parte do processo de independência é o fato de o Grito do Ipiranga ter ocorrido em São Paulo, província que cada vez mais ganhava relevância política e econômica no Brasil. 

 

No final do século XIX, São Paulo estava se desenvolvendo economicamente, adquirindo posição de centralidade política no Brasil. Assim, concentrar a independência do Brasil, ainda que no plano simbólico, em um evento supostamente ocorrido em São Paulo, se ajustaria perfeitamente bem a esse desenvolvimento político e econômico da região”, afirma Pimenta. 

 

A historiadora Lilia Schwarcz, uma das autoras do livro “O sequestro da Independência” (Companhia das Letras), afirma que a escolha do Grito do Ipiranga como marco da emancipação do Brasil foi feita para trazer uma perspectiva nacional para o evento – afinal, os principais aliados de dom Pedro estavam no Rio de Janeiro. 

 

Além disso, essa escolha também foi decisiva para a construção da imagem heróica do príncipe herdeiro da família real portuguesa. Afinal, é mais fácil se identificar com a simplicidade do riacho do Ipiranga, do que com um imperador sendo coroado no dia 1º de dezembro, justamente a data que marcava o aniversário do início da dinastia dos Bragança em Portugal. “Nessa versão (focada no 7 de setembro), é como se dom Pedro fosse o único responsável pela independência, abafando todos os outros movimentos que fizeram parte do processo”. 

 

Emancipação já estava decretada

 

Sabe-se que dom Pedro realizou uma viagem a São Paulo para negociar e tentar conter um levante que ganhava força na região, conhecida como Bernarda de Francisco Inácio. À essa altura, a emancipação já estava desenhada. Tanto que, no dia 1º de agosto de 1822, o príncipe já havia anunciado um manifesto em que declarava a separação de Portugal e convocava as províncias a aderir ao movimento. Antes mesmo de ir a São Paulo, já tinha decretado que as tropas da metrópole eram consideradas inimigas. 

 

Dez dias depois, o príncipe já estava de volta ao Rio de Janeiro e não precisou esperar muito para oficializar a independência. Logo enviou uma carta ao pai, dom João VI, para anunciar o rompimento. No dia 12 de outubro, no Rio de Janeiro, dom Pedro já era aclamado imperador com toda pompa que uma monarquia exige.

 

Para João Paulo Pimenta, é fundamental que o conhecimento crítico sobre o processo de independência seja difundido entre os cidadãos. “Nenhum historiador sério hoje em dia daria centralidade ao dia 7 de setembro e a uma suposta declaração de independência que nós, historiadores profissionais, já sabemos que não aconteceu. Superar essa distância entre conhecimento atualizado e especializado, e o conhecimento vulgar, em geral da maioria das pessoas, é muito importante. Isso passa pelos profissionais de mídia, do mercado cultural, mas passa principalmente pelo investimento em ciência e educação”. 

 

Marco fundante da nacionalidade

 

Professora do Departamento de História da PUC Minas, Jacyra Parreira explica que o Grito do Ipiranga é um marco fundante da nacionalidade brasileira e é preciso compreender a necessidade dos seres humanos de terem marcos e datas comemorativas em suas construções sociais. “Elas servem para nos orientar, nos guiar”, diz. 

 

Mas isso não quer dizer que uma criticidade sobre o processo de independência não deva ser levado para dentro de sala de aula. “O ensino sobre independência do Brasil atualmente é trabalhado sob o bojo das independências nas Américas. Isso a meu ver é um ganho, porque o Brasil faz parte do conjunto de países da América e as coisas se confluem, as discussões não são isoladas”, afirma a professora. 

 

Vale lembrar que, enquanto o Brasil se tornou um país monárquico de dimensão continental, a América Hispânica passou por uma fragmentação, com diferentes repúblicas sendo constituídas entre o México e a Argentina. 

 

Segundo a professora, ficou no passado um ensino que oferece protagonismo de um momento histórico relevante a um herói, como dom Pedro. “Um bom estudo de história é aquele que orienta os alunos nas análises diversas e não apenas em figuras proeminentes. É importante que o aluno consiga identificar essa figura de um imperador dentro de uma trama, dentro uma série de interesses, dos embates, das resistências”, diz Jacyra. “Trabalhar a figura de dom Pedro como único responsável (pela independência) é uma irresponsabilidade do professor, porque sabemos que é uma inverdade”.

 

Fonte: Cinthya Oliveira / O Tempo
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