Rui Car
05/07/2019 08h50

Conheça Afrodite, a caminhoneira transexual que roda o Brasil de salto alto, vestido e maquiagem

Recentemente, "ela" participou de uma campanha da Shell

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“Eu não sou um caminhoneiro que virou uma caminhoneira. Eu sou uma caminhoneira que estava presa no corpo de um homem”. É dessa forma que Afrodite, de 70 anos, se define ao lembrar de seu passado como Heraldo Almeida Araújo. Apesar de ter nascido em um corpo masculino, ela se identifica com o sexo feminino desde pequena.

“Até o início da adolescência, eu falava que eu não me conformava em ser homem. Quando eu era criança, eu já me questionava e me revoltada: ‘Por que eu não nasci mulher?’. Me perguntava por que meus seios não cresciam, e no meu subconsciente eu era uma menina oprimida”, recorda.

Afrodite – nome em referência à deusa grega do amor, da beleza e da sexualidade – sempre usou roupas femininas fora de casa e fazia as próprias peças íntimas quando trabalhava com malharia. Na década de 1990, gostava de sair à noite com vestido, maquiagem e salto alto pelos rincões do Brasil, enquanto viajava de caminhão. E desde aquela época não esconde seu gosto por batons, pulseiras e brincos entre os colegas de trabalho.

 

Mesmo exercendo uma profissão predominantemente masculina e com estereótipos viris, ela sempre lidou bem com os outros motoristas. Em caso de violência, sempre tinha caminhoneiros na mesma rota que ela para ajudá-la. “As pessoas me abordavam, faziam piadinhas, mas os companheiros de estrada nunca estranharam.

 

Colegas se encontram comigo e ficam admirados ao me ver… valorizam a minha coragem. Então nunca me agrediram. Sempre levaram as coisas na esportiva”, relata. “Eles ficam surpreendidos quando me veem de salto alto”, brinca.

 

Mas tudo mudava quando saía das rodovias e se aproximava da rua de casa. O medo da rejeição em se assumir transexual para a família fazia com que a mulher feliz que rodava o País dentro de um caminhão ganhasse uma feição triste. “Eu vivia amarrada por medo de desrespeitar minha ex-esposa e minha filha”, lamenta.

Há três anos, contudo, ela se abriu para os parentes e parou de se esconder em roupas masculinas – o que revelou preconceitos de quem antes a amava. Dois dos seus sete irmãos não só a impediram de entrar na empresa familiar da qual era sócia, como também a ameaçaram de morte e quase a bateram com uma barra de ferro.

 

A violência fez Afrodite levar o problema para a Justiça, onde venceu a causa sob a decisão de que os agressores deveriam procurar ajuda psicológica para aceitar a identidade de gênero da irmã. Nenhum a fez.

 

O amor que supera o ódio

Por outro lado, a caminhoneira recebeu o apoio dos pais, das ex-mulheres e da sua única filha Tatiana Araújo, de 43 anos. A relação dela com o pai (que ainda se denomina assim) sempre foi muito próxima e se diz grata pela criação que recebeu. “A única questão que ficou foi o vazio de eu não ter mais a figura paterna que eu vejo nas fotos, vídeos e na memória. Tenho uma outra imagem agora, mas a essência dele continua. Nada mudou”, afirma.

Tatiane diz ainda que é contra as visões preconceituosas que grupos conservadores impõem sobre a ideia de ‘tradicional família brasileira’. Segundo ela, que é fruto desse conceito, não é correto se considerar superior aos outros por estar dentro de um padrão social.

 

“Sou muito religiosa e minhas convicções pessoais são uma coisa, mas meu papel de cidadã dentro de uma sociedade diversa é outra”, afirma. “Sou casada com um homem, tenho uma filha e não sou melhor que ninguém por isso. Não estou certa nem errada”, completa.

Além disso, ela conta que Afrodite é bem aceita entre os amigos da família e não se importa com as designações de gênero. “Para nós, é tudo no masculino mesmo e está tudo bem. Ele aceita. Eu tenho minha mãe viva e não tenho espaço para outra mãe. Então a Afrodite é meu pai e avô da minha filha Vivian”, explica.

 

‘Minha angústia é não saber se vou chegar ao fim da vida como uma mulher’

Afrodite teve dois casamentos até hoje. O primeiro durou 16 anos e terminou em 1991, após ela engatar um romance com outra mulher. O segundo se deu por 14 anos e terminou em 2013 devido à sua dificuldade em sentir atração sexual. “Eu não tinha libido porque eu queria ter um corpo igual. Eu me imaginava como mulher em todas as situações da relação”, aponta.

 

 

Apesar disso, a caminhoneira não sabe dizer se é homossexual, pois nunca conseguiu se envolver com homens. “Eu castrei a mim mesma, mas não quero terminar minha vida assim. Quero alguém comigo”, desabafa. Ela faz terapia psicológica para lidar com o problema e espera que seu desejo por um dos sexos apareça depois de conseguir a cirurgia de transição de gênero, que fará pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

De acordo com o psiquiatra e coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das ClínicasAlexandre Saadeh, a cirurgia não muda a orientação sexual ou desperta desejos. “Ela pode ter bloqueado a libido e, depois da cirurgia, quando ela se reconhecer, ficará mais fácil sentir atração porque não haverá aspectos físicos que a limite de exercer a sexualidade”, explica.

 

A dificuldade com relacionamentos nunca impediu Afrodite de levar uma vida tranquila. Hoje, ela faz cerca de uma viagem por semana de caminhão pelo Brasil e, quando retorna, mata a saudade de seus oito gatos em sua casa na periferia de Cuiabá, onde mora sozinha. “Vivo muito contente. Todo mundo que me conheceu fala que eu estou rejuvenescida, com outra aparência [após me assumir completamente]”, diz.

No entanto, o medo de morrer sem ter conseguido mudar de sexo ainda a atormenta. “Fico triste quando estou nua em frente ao espelho, olho para baixo e vejo que ainda sou homem. Minha angústia é saber se vou conseguir ou não chegar ao fim da vida como uma mulher”, desabafa.

 

‘Ela está na idade limite’

A preocupação de Afrodite não é para menos. Há apenas cinco unidades especializadas do SUS nesse tipo de cirurgia em todo o Brasil (São Paulo, Recife, Rio, Goiânia e Porto Alegre), o que torna a fila grande e gera um tempo de espera de em média cinco anos.

 

Além disso, Saadeh explica que a caminhoneira está na idade limite (70 anos) para a realização da cirurgia, uma vez que idosos correm o risco de sofrer necroses (morte das células ou tecidos por doença ou lesão) e a sustentação da pele diminui. Um outro agravante é seu problema com diabete, o que dificulta a cicatrização.

Esses fatores levaram a médica de Afrodite a tomar precauções na hormonioterapia. Os processos para a operação já estão em andamento e ela colocará silicone nos seios ainda neste ano. Entretanto, como seu índice de glicose no sangue ainda não está estável, ela não tem previsão para a mudança definitiva de sexo.

De qualquer forma, a caminhoneira segue realizada com as conquistas que obteve nos últimos anos. “O antigo Heraldo morreu, eu nasci e nunca mais vesti uma roupa de homem”. Recentemente, ela participou de uma campanha da Shell contando parte de sua história. Assista aqui.

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