Rui Car
29/06/2021 16h44 - Atualizado em 30/06/2021 10h41

Conheça seu Oda, o japonês que mudou a pesca na Armação, em Florianópolis

Quando se estabeleceu na Ilha de Santa Catarina, o imigrante compartilhou com os nativos seu conhecimento

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Naboru Oda, à direita, com a família (Foto: Família Kawano / Divulgação)

Naboru Oda, à direita, com a família (Foto: Família Kawano / Divulgação)

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Nesta terça-feira (29) se comemora o Dia do Pescador, e não há nada mais especial do que relembrar grandes histórias para celebrar a data.

 

Armação do Pântano do Sul, em Florianópolis, sempre foi pródiga com os pescadores, e ainda hoje tem rancho e uma pequena colônia de profissionais que vivem do que o mar tem a oferecer. Ali ao lado, a praia do Matadeiro foi marcada, durante séculos, pelo beneficiamento da gordura de baleia, empregando o trabalho livre e o escravo. No entanto, a pesca artesanal do lugar foi transformada por um sujeito em nada parecido com os manezinhos descendentes dos colonos açorianos que aportaram na Ilha de Santa Catarina em meados do século 18.

 

Antigos pescadores da Armação – Foto: Família Kawano/Divulgação/ND

Antigos pescadores da Armação (Foto: Família Kawano / Divulgação)

Corriam os anos de 1950 quando o japonês Noboru Oda chegou de mansinho e ajudou a impulsionar a economia local com uma tecnologia de captura de peixes que deixou pegadas até hoje na comunidade. Ele trabalhava no litoral do Rio de Janeiro quando foi convidado pelo pescador ilhéu Milton Grande, que estava visitando aquela região (Ilha Grande), a conhecer os potenciais de Santa Catarina e usar aqui o sistema de cerco que funcionava muito bem no litoral sudeste do país.

 

Na técnica de cerco usada por Naboru Oda a rede de pesca era fixada numa rocha e a linha deslizava para o mar. Sustentada por cordas de algodão, a rede flutuava porque era presa a um bambu-açu e ficava amarrada a âncoras de pedra, resistindo ao movimento das correntes. Como numa armadilha, havia uma boca por onde os peixes entravam e não podiam mais sair. Então, era só puxar a boca e capturar o cardume. Como a região contígua é pródiga em costões, o sucesso do japonês foi imediato, assim como o assombro dos pescadores locais com a tecnologia e a fartura de peixes.

 

Ele levava uma parte de caminhão até a empresa Pioneira da Costa e dividia o restante do pescado entre os companheiros e os moradores do bairro”, conta Nereide Oda de Souza, neta do japonês. No começo, desconfiados, os pescadores temiam pelo fim dos estoques de peixes no Sul da Ilha, mas depois perceberam que também poderiam ganhar com esse sistema de captura. “O cerco dele era fora de série”, conta Aldo Corrêa de Souza, nativo de 81 anos que está entre os pescadores mais experientes e conhecidos da região.

 

Homenagem em forma de livro

 

Pode parecer estranho que uma técnica aparentemente prosaica permitisse a captura de toneladas de peixes, certamente contando com a fartura existente na época. No entanto, essa experiência foi testemunhada por dezenas de pessoas na Armação, está virando uma tese de mestrado defendida por um neto e vai ser contada em livro, pelas mãos da neta Nereide.

 

Somiko (esq.)é a únicafilha vivade seu Oda.Nereide é aneta que estáescrevendoum livrosobre o avô – Foto: Leo Munhoz/ND

Somiko (esq.) é a única filha vivade seu Oda. Nereide é a neta que está escrevendo um livro sobre o avô (Foto: Leo Munhoz)

Chamado de Dinho pelos pescadores, seu Oda ajudou a fomentar a economia da Armação, então uma vila com poucas casas e dependente do escambo de frutos do mar e produtos agrícolas entre os moradores para sobreviver. Parte de sua família mora no bairro, incluindo Somiko Oda, 86 anos, a única filha viva. Os familiares ainda usufruem do prestígio do pioneiro, citado por todos com grande respeito.

 

Ele também ajudava a manter a escola local e fez benfeitorias no bairro, onde deixou muitos amigos”, Nereide Oda, neta de seu Noboru Oda.

 

Nome lembrado até hoje na comunidade

 

O tipo físico, os olhos puxados, o sotaque oriental, tudo isso foi sendo aos poucos assimilado pelos moradores, mas o que levou Noboru Oda a conquistar os nativos foi sua técnica para capturar cardumes, trazida de Kagoshima, no Japão, sua terra natal. Na primeira vez que usou a rede de cerco, foram milhares de peixes, num lanço que rendeu dezenas de vezes mais do que o sistema convencional de pesca de arrastão. Os segredos do japonês estavam em livros que ele trouxe de longe e que aplicou no litoral brasileiro. Esse material, assim como desenhos detalhando a fabricação da rede especial, ficou com a família. Mesmo que não houvesse o sigilo proposital, a barreira da língua dificultaria o entendimento do sistema pelos nativos.

 

Junto com o enteado Nilo Oda, que o acompanhava, Noboru se tornou empresário, deu trabalho fixo a muita gente e ajudou a mudar o perfil da Armação, a ponto de muitas casas de estuque e telhado de palha serem substituídas por construções bem mais confortáveis. “Ele também ajudava a manter a escola local e fez benfeitorias no bairro, onde deixou muitos amigos”, afirma a neta Nereide Oda. Somiko, a filha (tia de Nereide), é de falar pouco, mas diz que “ele trouxe uma pedra de diamantes para a comunidade”. Quando morreu, em 1979, aos 60 anos, a Armação parou e todas as crianças da escola acompanharam o enterro.

 

Ainda hoje Somiko, a sobrinha Nereide e os demais descendentes mantêm os hábitos ancestrais, fazem pratos à moda oriental e usam insumos pouco conhecidos pela maioria dos moradores da região. A matéria prima e os temperos são especiais, às vezes importados do Japão.

 

No Exército, aos 19 anos, calçou o primeiro par de sapatos

 

Conhecedor do mar como poucos, Aldo Corrêa de Souza fala com propriedade das diferentes fases da história da Armação do Pântano do Sul, a começar pela caça à baleia e passando pelos anos dourados da pesca – embora a atividade, sempre cansativa e perigosa, nunca tivesse remunerado a contento os que dela dependiam. Comenta sobre chifres e panelas de ouro supostamente enterradas no Matadeiro, a partir de relatos de seu tataravô. Recorda dos riscos e sustos com os temporais e dos barcos a vela e remo, depois com motores a gasolina, fracos diante das ondas bravias. E conta, com lágrimas nos olhos, que alçou seu primeiro par de sapatos aos 19 anos, quando foi servir o Exército.

 

Seu Aldo faz parte do que a professora e pesquisadora Roseli Pereira, moradora da Armação, chama de “camaradas da pesca” na região. O pai de Roseli, Osvaldo Francisco da Silva, o Canduca, era dono de embarcações e criou os filhos com o produto que vinha do mar. Foi ele quem, no final da década de 50, cedeu uma parte de seu terreno para que o japonês Noboru Oda se instalasse e começasse a trabalhar com os pescadores, aumentando a renda da população local.

 

Aldo Côrrea de Souza carrega um balaio de histórias das pescarias no Sul da Ilha – Foto: Leo Munhoz/ND

Aldo Côrrea de Souza carrega um balaio de histórias das pescarias no Sul da Ilha (Foto: Leo Munhoz)

Tanto seu Aldo quanto Roseli Pereira citam como uma das heranças da presença de Oda no bairro a valorização da lula e do polvo, até então descartados pelos pescadores. Além dos dois cercos que construiu na Armação, o japonês e sua mulher Sakie mostraram aos nativos o preparo de pratos usando o também desprezado broto de bambu, por exemplo. “Sakie nos ensinou a tomar os primeiros banhos de ofurô e comer bolinhos de feijão e arroz empapado”, diz Roseli.

 

Uma das heranças da presença de Oda no bairro é a valorização da lula e do polvo, até então descartados pelos pescadores. O japonês e sua mulher Sakie também mostraram aos nativos o preparo de pratos usando broto de bambu.

 

Histórias de vida entre plantações e o mar

 

Conversar com Aldo Corrêa de Souza é viajar ao tempo em que o mar era farto em tainhas e anchovas e o peixe e a carne eram escalados ou transformados em charque para não estragar. “Antes de matar um boi, o dono ‘arrolava’ a carne, ou seja, passava de casa em casa para saber quantos quilos o morador queria comprar, porque nada podia sobrar”, recorda. O peixe era farto, mas tinha pouco valor. “Pescador é sempre o que menos ganha, se sacrifica muito e vende o almoço para comer a janta”, lamenta. Uma alternativa para os velhos pescadores era sair vendendo o peixe nos municípios vizinhos de Florianópolis, trocando o pescado por carne, banha de porco, torresmo e frutas.

 

Nascido a poucos metros da praia, Aldo lembra dos engenhos de farinha de mandioca e açúcar, das plantações de milho e feijão e das galinhas caipiras que muitas famílias criavam no quintal. Isolada, a Armação não tinha linhas de ônibus para a cidade e as estradas eram
precárias. O café produzido ali era moído em pilões e o miolo da baga de ‘anoga’ (semente da nogueira) resultava em sabão para lavar roupa. Bem antes do chumbo, as redes desciam ao mar com o peso de saquinhos de areia. Havia diversão daqueles anos? Só nas domingueiras, bailes, partidas de futebol de várzea, brincadeiras do boi de mamão – e nos namoricos, muitas vezes escondidos das famílias.

 

Era também o tempo de educação rígida e de respeito aos mais velhos. E há as muitas histórias de bruxarias, lobisomens e feiticeiras, que povoavam o imaginário dos velhos moradores. Uma prova da ligação de seu Aldo com a pesca são uma costela e uma nadadeira de baleia que ele ainda ostenta no quintal de sua residência.


POR: PAULO CLÓVIS SCHMITZ – ND+

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