Rui Car
23/09/2019 11h12 - Atualizado em 23/09/2019 09h20

Filicídio: por que pais e mães matam os próprios filhos?

É preciso uma análise do contexto para entender o que leva um pai ou mãe a ferir um filho

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Uma mãe atropela propositalmente o próprio filho. Outra estrangula a criança para que ela “não morra de fome”. Os jornais estão cheios de notícias de casos como esses, em que os pais cometem atos de grande violência com os próprios filhos. Mas, por que isso acontece? O que leva um pai ou uma mãe a perderem completamente o vínculo com essas crianças, a ponto de cometerem atos tão extremos?

 

“Em nossa cultura, o amor entre pais e filhos é compreendido como ‘natural’, como eminente do papel de mãe e pai”, comenta Carolina Pinheiro, psicóloga clínica, especialista em Saúde Mental e mestre em Saúde Coletiva. “Carregamos uma idealização desses papéis que precisa ser considerada: o amor incondicional dos pais, o desejo de proximidade, de cuidado e proteção visto como próprios desses papéis gera, por um lado, sofrimento associado ao sentimento de culpa desses pais quando têm qualquer sentimento diferente do afeto/amor/carinho pelos filhos, e geram uma carga de frustração aos filhos quando não recebem esse afeto/amor/carinho de seus pais”.

 

Carolina explica que o vínculo entre filhos e pais é construído socialmente, e envolve uma série de fatores que devem ser considerados: a história de vida desses pais, a imagem de referência materna e paterna que eles tiveram, o contexto da gestação dos filhos, a dinâmica do casal, o desejo de vivenciar uma maternidade / paternidade e o lugar que essas crianças assumem na vida dessas pessoas.

 

Diante desse quadro geral a psicóloga explica que sentimentos de rejeição ou de raiva contra a criança podem não só surgir com frequência como são uma resposta natural a qualquer contrariedade que essa maternidade ou paternidade tenha causado na vida e na história dos pais.

 

Há, na sociedade, a ideia de que os progenitores precisam se sacrificar em nome da felicidade da criança – isso fica ainda mais forte em relação às mães, que, muitas vezes acabam criando esses filhos sozinhas. Essas privações são vistas com bons olhos, mas o que não se vê é o que elas podem gerar a longo prazo. Parar de trabalhar para cuidar da criança, uma separação por conta de divergências na criação dos filhos, até uma projeção, na criança, dos sonhos e desejos dos pais pode alimentar sensações que, em casos extremos, levam à situações de grande violência.

 

O filicídio – ou o ato deliberado de um pai ou uma mãe matarem os próprios filhos -, é um grande tabu. Entender que esses os vínculos podem ser quebrados a esse ponto é, sim, complicado, mas são o resultado de um todo um contexto de negligência e violência vivido pelos adultos da família.

 

“Existem possibilidades diversas dessa vinculação entre pais/mães-filhos apresentar-se fragilizada: a ausência de expressão afetiva, as violências, as negligências e a exposição a situações de risco. Tudo isso, em geral, se manifesta de forma progressiva nessas relações, e atos de maior impacto podem vir a ocorrer quando não há uma intervenção nesse percurso”, diz Carolina.

 

A psicóloga explica que os casos de filicídio envolvem algumas premissas:

  • Quando pais/mães matam seus filhos para os protegerem de um grande sofrimento (e, em geral, cometem suicídio em seguida);

  • Quando há uma retaliação a terceiros, em casos que o ódio a uma pessoa é transferido para a criança (como no mito de Medeia, que mata seus filhos para punir o marido por sua traição conjugal);

  • Ou ainda nos casos que demonstram a presença de um transtorno mental grave, nos quais conteúdos delirantes podem levar a atos dessa natureza.

 

“Uma situação de violência pode ser justificada por alguma ligação emocionalmente doentia, e pode ocasionar uma quebra de vínculo na pessoa que recebeu a agressão”, reforça também a psicóloga Silvia Malamud, especializada em abuso, EMDR e abordagens de reprocessamento cerebral.

Grown up rebuking a little child for bad behavior
Muitas vezes, os vínculos são quebrados por uma sensação crescente de rejeição e raiva por parte dos pais (Foto: Getty Creative)
 

Por que atos de filicídio dão audiência?

Verdade seja dita, casos como esses – quem lembra de Isabella Nardoni? – chocam e impressionam tanto porque expõem sentimentos humanos que são pouco trabalhados. Segundo Silvia, essas ocorrências mostram a quebra de tudo o que pode ser considerado mais sagrado: a intimidade, o suposto pacto de confiança e de respeito entre pessoas que, também supostamente, deveriam ter uma parceria de amor que dura toda a vida.

 

“Também muitos ficam chocados porque são possibilidades reais e que podem estar muito mais próximas de cada um do que se imagina”, continua a profissional.

 

Mais do que o choque, porém, esses casos podem ser vistos de outra forma, como uma maneira de conscientizar a população sobre situações que acontecem, mas que podem ser evitadas. “Os alarmes devem ser acionados antes de que alguma violência maior possa ocorrer. A população precisa, em muitos aspectos, ser auxiliada para entender a profundidade e a importância do vínculo entre pessoas”, diz.

 

Para isso, porém, existe um trabalho anterior, que Carolina explica bem: “Muitas são as possibilidades de construção desse laços, e eles sempre se dão de forma complexa, agregando elementos que irão fortalecê-los e outros que interferem negativamente nesse enlace. Poder acolher e tornar consciente todos esses aspectos é fundamental, mas exige o contato com sentimentos socialmente condenados, como a rejeição ou a raiva dos pais em relação aos filhos”.

 

Ela atenta também que esses sentimentos não são reservados apenas na relação pais e filhos, mas pode acontecer com frequência entre quaisquer pessoas. Uma forma de lidar melhor com isso é gerar ambientes de acolhimento e de reconhecimento de que essas sensações são humanas e podem, sim, aparecer, ao mesmo tempo que nos protegem da possibilidade de atuação inconsciente em relação a esses afetos.

 

“Dito isto, o cuidado aos vínculos familiares, tornando consciente todos os afetos que atravessam esses laços – por mais que sejam socialmente considerados inadequados, com a intervenção no sentido de cuidado e proteção nos casos em que as pequenas violências começam a se fazer presentes -, pode evitar que o rompimento dos laços se dê de forma mais violenta e catastrófica”, finaliza Carolina.

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