Rui Car
20/07/2020 14h41

A primeira sessão de cinema na Ilha de Santa Catarina

No final do século 18, Desterro foi a única cidade do país a assistir a uma projeção da “lanterna mágica”, trazida pelo navegador La Pérouse

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Fonte: ND Mais

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Terra de casos e ocasos raros, como é conhecida, coube também à Ilha de Santa Catarina o privilégio de assistir à primeira exibição da “Lanterna Mágica”, precursora do cinematógrafo, em território brasileiro. Esse fato raro data do ano de 1785, quando o explorador Jean-François de Galaup, o Conde de La Pérouse, parou na cidade do Desterro, antigo nome de Florianópolis, para se reabastecer antes de prosseguir numa jornada de volta ao mundo, a mando do rei francês Luís 16.

 

O navegador viajava com as fragatas Boussole e Astrolabe, equipadas para elaborar pesquisas e estudos sobre geometria, astronomia, física, química, mineralogia, anatomia, zoologia e botânica – e que traziam a bordo uma novidade que a corte francesa queria difundir como resultado das novas descobertas científicas.

 

Conhecida na Europa desde o século 17, a “lanterna mágica” precedeu, em sua rusticidade, o projetor de cinema, que transformaria o conceito de entretenimento muitos anos depois. As apresentações em frente à catedral do Desterro foram feitas com o modelo Zahn, que continha 12 lâmpadas que acendiam por meio de pilhas.

 

As imagens projetadas em paredes tinham o acompanhamento de “serinettes”, pequenas caixas munidas de uma manivela que permitia executar canções previamente catalogadas. Na verdade, tratava-se de uma espécie de realejo acoplado a um projetor, que fazia “uma sucessão de imagens que simulavam movimento”, segundo o cinéfilo, pesquisador e escritor Gilberto Gerlach, morador de São José, na Grande Florianópolis.

 

Como La Pérouse não parou em nenhum outro ponto da costa brasileira, Desterro foi o único lugar da então colônia de Portugal onde a “lanterna mágica” foi vista. “As imagens eram meio esdrúxulas, fantasmagóricas, e metiam medo”, diz Gerlach, que conheceu um aparelho similar ao apresentado na Ilha quando visitou a casa onde nasceu o explorador, em Albi, no sul da França, onde também há um museu que leva o seu nome. Lá, ele encontrou um descendente da La Pérouse, muito parecido com as imagens do antepassado – até na maneira de rir. “Ele só falava rindo”, recorda o escritor.

 

Na biblioteca do Museu da Marinha, em Paris, o escritor josefense localizou o livro “Le mystere Lapérouse” e viu uma exposição com as descobertas feitas em 2005 por uma expedição francesa que foi atrás dos despojos do navio do explorador que naufragou no Pacífico três anos depois de deixar o litoral brasileiro.

 

No telão, acompanhou parte de um filme com seis horas de duração que mostrava em detalhes o que foi encontrado e resgatado no fundo do mar. Parte desse material Gilberto incluiu num pequeno documentário e também no livro “Desterro”, que lançou em 2010.

 

Máquina a serviço da fantasmagoria

 

Um dicionário português do século 18 assim definia a “lanterna mágica”: “Máquina que mostra, na escuridão, sobre uma parede branca, vários espectros e monstros horrorosos, de tal maneira que as pessoas que não lhe conheçam o segredo julgam que isto se faz por artes mágicas”.

 

Usando imagens sobre vidro pintadas em cores translúcidas, ela era composta por uma fonte de luz (uma vela, por exemplo), um refletor, um condensador e uma objetiva. O astrônomo holandês Christiaan Huygens fez, em 1659, uma das primeiras descrições do aparelho, que passou a ser utilizado em espetáculos e como instrumento pedagógico nos anos seguintes.

 

Quando se popularizou, a máquina serviu a distintos interesses – os religiosos usaram-na para ensinar a doutrina e amedrontar os fiéis, e quem queria divertir as pessoas, em sessões de rua ou nos salões da alta sociedade, também apostou nos seus poderes “mágicos”. No século 18, espetáculos de fantasmagoria passaram a ser oferecidos em diferentes cidades europeias. Em ambientes fechados, a lanterna não era vista pelo público, porque ficava atrás de uma fina tela branca, enquanto os espectadores se concentravam na frente, na penumbra.

 

No largo da matriz do Desterro, em 1785, as projeções por meio da “lanterna mágica” foram assistidas, entre outros, pelo governador Teixeira Omem, conhecido como “Sete Carapuças”. O livro “Lanterna Mágica”, lançado em 2019 pelo poeta Rodrigo de Haro, faz referências a esse episódio da história do Desterro.

 

De acordo com Gilberto Gerlach, as músicas das “serinettes” (nome inspirado no canto das sereias, na mitologia), que animavam as projeções, “passaram de geração a geração e não faz muito tempo ainda eram ouvidas em diferentes lugares”.

 

Aventura de La Pérouse acabou em naufrágio no Pacífico

 

A expedição do Conde de La Pérouse que passou pela Ilha de Santa Catarina no final do século 18 foi uma aventura digna dos grandes épicos do cinema. Os navios Boussole e Astrolabe conduziam uma equipe de sábios e nobres, a maioria jovens, e um estoque enorme de objetos (duas mil machadinhas, dois mil pentes e um milhão de alfinetes) que tinham o fim de seduzir os nativos em todos os lugares onde a comitiva aportasse.

 

O explorador partiu do porto de Brest e também trazia bois, porcos e aves, biscoitos em caixas, bombons, manteiga, chucrute, cereais e vinho. Por aqui, durante a permanência de 12 dias, seus mais de 220 homens se abasteceram sobretudo de laranjas, o melhor antídoto para o escorbuto, a doença mais temida pelos navegadores.

 

Um dos membros da expedição era o célebre desenhista Gaspard Duché de Vancy, que deixou para a posteridade e para o mundo as célebres vistas da cidade do Desterro tomadas do morro do Menino Deus – e que correram a Europa nos anos seguintes. Nos relatos que fez, e que foram mandados (junto com os desenhos) daqui para a França logo após a partida, La Pérouse falava dos temporais e da neblina que pegou na Ilha de Santa Catarina, da população de “no máximo 3 mil almas e 400 casas”, da fertilidade da terra e da pobreza dos moradores.

 

Após deixar o Brasil, a expedição navegou em direção ao Pacífico, dobrando o cabo Horn e seguindo pelo estreito de Magalhães. Nas costas da Austrália (ilhas Vanikoro), em junho de 1788, veio o fatídico naufrágio que interrompeu a viagem.

 

La Pérouse comandava o Boussole, de 42 metros de comprimento, mas a primeira vítima foi Paul Antoine Fleuriot de Langle, que conduzia o Astrolabe, cuja tripulação foi massacrada pelos nativos na ilha de Maouna (arquipélago de Samoa), em dezembro de 1787, quando tentava se abastecer de água para prosseguir viagem. Sozinha, a fragata de La Pérouse não resistiu a uma tempestade em mar aberto e foi a pique no ano seguinte.

 

A França organizou várias expedições para tentar achar os despojos do Boussole, mas foi só há 15 anos, na terceira delas, que o local do naufrágio foi localizado.

 

“O navio foi encontrado numa escarpa subaquática e ainda guardava peças e cacos de louça, além de um esqueleto inteiro, que foi reconstruído em laboratório”, conta Gilberto Gerlach. Especula-se que ele pode ser do desenhista de Vancy, mas o mistério permanece – o que explica o nome do livro acima citado.

 

Curiosidades

 

– Há cerca de sete mil anos, os chineses já projetavam sombras de figuras recortadas e lançadas sobre as paredes. No século 15, Leonardo da Vinci criou a câmara escura com um orifício e uma lente que permitia visualizar imagens a partir de uma fonte de luz no interior de uma caixa fechada.

 

– Até chegar ao cinema como é hoje conhecido, a arte da projeção passou pelo cinetoscópio (inventado por Thomas A. Edison), pelo cinematógrafo (dos irmãos Louis e Auguste Lumière) e por outras criações do gênero, em diferentes épocas e lugares.

 

– O auge da “lanterna mágica” foi no século 18, quando a cidade de Paris passou a abrigar sessões em construções enormes erguidas para este fim. A igreja foi contra, porque as pessoas assistiam as projeções cheirando ópio. Muitas se sentavam no chão, em todos os cantos, porque as imagens justapostas pareciam pairar no ar, no meio da sala.

 

– Hoje, versões modernas da “lanterna mágica” para crianças são oferecidas em lojas e em sites de vendas online. O calor de uma lâmpada gira o cilindro e anima as figuras dos personagens, projetando imagens em cores suaves que ajudam os bebês a adormecerem.

 

– A caminho da guilhotina, em janeiro de 1793, o rei Luís 16 ainda teve a presença de espírito de pedir notícias de La Pérouse, seu favorito, a quem tinha estimulado a viajar para fazer explorações que repetissem as façanhas do célebre navegador e cartógrafo britânico James Cook.

 

– Da Ilha de Santa Catarina, La Pérouse levou bois, porcos e galinhas para garantir alimentação da tripulação dos dois navios na etapa seguinte da viagem, além de mudas de laranja e limão. Elogiou a hospitalidade dos habitantes, e assim escreveu: “Seus costumes são delicados; eles são bons, polidos, serviçais, mas supersticiosos e ciumentos de suas mulheres, as quais jamais aparecem em público”.

 

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