Rui Car
15/06/2018 09h07

Reclinar o encosto da poltrona do avião é uma grande demonstração de egoísmo

Solidariedade aérea: não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você

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A liberdade de uma pessoa acaba quando começa a restringir a de outra. Seu direito de reclinar o encosto da poltrona do avião o máximo possível – algo que minha colega Annabel Fenwick Elliott acredita ser aceitável – impacta diretamente o meu direito a alguns preciosos centímetros de espaço entre meu corpo e a mesinha de refeições.

 

Numa época na qual nós, como sociedade, concordamos em vender nossos direitos aos luxos da era de ouro da aviação em troca de voos mais baratos, a distância entre as duas fileiras de poltronas é, basicamente, tudo que nos restou, e não queremos perdê-la por causa de uma sensação percebida de conforto.

 

Talvez isso seja o que mais me irrita na pessoa sentada na poltrona 18B quando eu estou na 19B, quando ela decide reclinar o encosto e invadir o meu espaço pessoal: para ela a mudança na posição é tão mínima que é experimentada apenas na mente. Ninguém sente uma onda de relaxamento invadir o seu corpo ao ganhar aqueles três graus a mais ao reclinar a cadeira, eles só curtem a sensação de saber que podem fazer isso. Pode ser que eu me sinta assim porque tenho 1,88 metro de altura, então preciso de mais do que uma pequena inclinação para relaxar num voo da Ryanair.

 

Na minha opinião, a gratificação presente naquele pequeno botão no apoio do braço não vale a culpa egoísta de saber que você está roubando o espaço de outra pessoa. Você literalmente invadiu um espaço do meu território. É uma desapropriação de terreno, uma anexação silenciosa de uma das minhas fronteiras, e simplesmente não é legal.

 

Tudo isso antes da chegada das bebidas e comidas, que quase não vale a pena mencionar já que todos conhecem o posicionamento estranho necessário para comer naquele espaço a 11 mil metros de altura, sem que a mesa de refeições afunde em seu plexo solar.

 

Um passageiro respeitando o outro. Crédito: E+
 

Se nos movermos do cenário da aviação e traçarmos paralelos fora do avião, a resposta para definir se é aceitável ou não reclinar a poltrona do avião fica ainda mais clara.

 

Num restaurante, quando você está se sentindo particularmente cansado depois de um longo dia de trabalho, você não pegaria algumas batatas fritas do prato do vizinho sem pedir. Você não espalharia as suas malas no corredor de um trem, prejudicando a passagem alheia. Num show ao vivo, os fãs se movem para encontrar a melhor posição para que todos vejam a performance da melhor forma, sem que um tampe completamente a visão do outro.

 

Em um episódio de 2002 da série britânica ‘Black Books’, Fran, interpretada por Tamsin Greig, vê seu flat diminuir de tamanho após seu dono Johnny Vegas, encantado com sua vizinha charmosa, mover a parede para dar ao objeto da sua afeição um pouco mais de espaço durante uma onda de calor. Ao descobrir a invasão, Fran fica abismada com o fato de que o conforto de uma pessoa foi aumentado às custas de outra.

 

Voltando à ideia da busca coletiva da sociedade por passagens aéreas cada vez mais baratas, voar nunca teve tanto a ver com a solidariedade.

 

 

Todos passamos pelos mesmos obstáculos: aviões apertados, a impossibilidade de levar bagagens gratuitamente e assentos longe das pessoas que nos acompanham.

 

Compartilhamos a emoção de chegar ao nosso destino, de aguentar as dificuldades de uma companhia aérea low-cost ou aeroporto distante. Nós embarcamos juntos, desembarcamos juntos, e entre estes dois momentos, ficamos lado a lado, literalmente.

 

Reclinar o encosto da sua poltrona e invadir o espaço do outro quebra este contrato social. Perguntar se você pode fazer isso é melhor do que nada, e quase torna o ato aceitável, mas ainda assim, tenho minhas dúvidas.

 

Nenhum passageiro educado teria coragem de dizer ‘não’, e quem gostaria de colocar outra pessoa nesta posição?

 

É claro que você tem o direito de reclinar o seu encosto, afinal, aquele botão está lá por uma razão, e alguém poderia até argumentar que este é um dos poucos pequenos luxos da classe econômica. Mas o valor de fazer isso num voo de 90 minutos não compensa, ao saber que o passageiro atrás de você perdeu alguns preciosos centímetros de alívio.

 

O mais importante, numa época em que interação humana é a exceção, e não a regra, manter o encosto da poltrona na posição vertical é como uma linha a mais para o tecido cada vez mais fino que sustenta a camaradagem entre os viajantes.

 

 

Hugh Morris

The Telegraph

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