Rui Car
09/04/2018 16h10 - Atualizado em 09/04/2018 15h20

Será que ‘ficar entediado’ é a nova tendência para as viagens de férias?

A Getaway sugere que seus visitantes “fiquem entediados” em suas cabanas

Assistência Familiar Alto Vale
Yahoo!

Yahoo!

Delta Ativa

Apenas pessoas entediantes ficam entediadas. Foi isso que sempre ouvi. Portanto, meu cérebro lutou para processar o que li no manual de instruções chamado “E agora?”, que estava na cabana onde eu e minha namorada iríamos passar as duas próximas noites.

 

“Fique entediado”, dizia o manual, em meio a outras coisas para fazermos ou não.

 

Nós havíamos acabado de chegar a nossa cabana da Getaway, localizada em algum ponto das Montanhas Catskill no norte do estado de Nova Iorque – uma parada no nosso trajeto da cidade de Nova Iorque até Kingston, no Canadá.

 

Getaway has cabins to escape from New York, Boston and Washington D.C - Credit: Bearwalk
A Getaway tem cabanas rústicas para “escapadas”, saindo de Nova Iorque, Boston e Washington. Crédito: Bearwalk
 
 

O norte do estado de Nova Iorque é uma região que nenhum de nós dois havia visitado, mas eu me senti em território familiar quando visitei o maravilhoso site da Getaway algumas semanas antes. Eu já havia ficado em yurts, hotéis-cápsula e caravanas ciganas o suficiente para saber como funciona: eu ia pagar pela chance de dormir no jardim de alguém, gelar a garrafa de vinho na pia porque o frigobar é pequeno demais, fazer minhas necessidades numa casinha externa e depois contar várias vezes minha experiência para meus amigos quando voltasse para casa, evitando usar a palavra “rústico”.

 

Mas há uma pegadinha no que diz respeito à Getaway. Você só recebe informação sobre a localização uma semana antes da data de partida. Quando você faz a reserva, só sabe que a sua pequena cabana na floresta está a duas horas de Nova Iorque (eles também têm cabanas servindo as regiões de Boston e Washington, D.C).

 

The tiered interior of a Getaway cabin with a view into the woods - Credit: Liz Calka (@lizcalka) for Getaway
O interior de uma cabana da Getaway com vista para a floresta. Crédito: Liz Calka (@lizcalka) para Getaway
 
 

É claro, eu pensei. Primeiro veio o Cinema Secreto, depois empresas de férias secretas como a Surprise Me, e agora uma aventura secreta na floresta. Entendi. Pode continuar. Pode me levar vendado até o banheiro seco, com compostagem.

 

No entanto, enquanto eu lia o manual “E agora?” e observava a cabana, ficou claro que algo diferente estava acontecendo.

 

Um cofre me incentivava a abandonar meu telefone celular durante toda a estadia. Percebi que não havia espelhos. O manual de sobrevivência estava me incentivando a evitar e-mails, trabalho, competição, planejamento, e de forma interessante e paradoxal, sugeria que os visitantes ficassem entediados.

 

Visitors at Getaway are encouraged to lock their phones away. - Credit: Jennifer Young (@jenniferyoungstudio) for Getaway
Os visitantes da Getaway são incentivados a deixar seus telefones celulares trancados. Crédito: Jennifer Young (@jenniferyoungstudio) para Getaway
 

A Getaway é um refúgio para as pessoas que estão cansadas de cidades, tecnologia, trabalho – ou dos três juntos – e querem escapar disso. O fato de tudo ser secreto tem como objetivo impedir o excesso de planejamento na estadia e simplesmente apreciar a paz da cabana.

 

Quando você chega – após abrir a porta com uma senha de quatro dígitos, sem qualquer formalidade de check-in – o espaço lhe dá as boas-vindas com um layout em etapas. Uma pequena cozinha termina num degrau que leva à área de estar, com uma mesa de jantar escondida. No próximo “andar” há um colchão tamanho queen posicionado ao lado da principal atração – uma janela enorme com vista para uma floresta de pinheiros. Do outro lado da cozinha há um banheiro com chuveiro quente e (aleluia!) um futurista vaso sanitário eletrônico.

 

Na primeira noite, lemos todo o manual “E agora?”, cheio de charadas e poemas sobre a floresta, que continha também uma lista de perguntas para fazermos um ao outro. Nós havíamos trazido nossos próprios ingredientes frescos para cozinhar, mas para quem chega despreparado, direto do escritório, há uma despensa emergencial com itens como macarrão sem glúten, molho de quinoa e vegetais, granola de aveia orgânica (você entendeu o estilo) que podem ser comprados.

 

Estávamos sendo “Getawayers” perfeitos, mas aí quebramos algumas regras. Um cabo auxiliar saindo do rádio e pendurado de forma tentadora me levou a retirar o celular do “cofre” e conectá-lo para tocar música (no modo avião, juro). Um baralho de cartas também nos fez quebrar a regra que ressaltava a importância de evitar a competitividade.

 

Quando foi anoitecendo, sentamos diante da televisão florestal – a vista dos troncos cruzados por um riacho sonolento – até que a luz do dia se apagou completamente e ficamos observando nossos próprios reflexos no espelho preto. “Há uma metáfora aqui em algum lugar,” disse eu, brincando, a Vick. “Você está pensando demais neste artigo,” respondeu ela.

 

No dia seguinte acordamos com o barulho dos estorninhos nas copas das árvores. Deitado na cama, eu conseguia ver enxames que de vez em quando cruzavam o espaço entre as árvores – ruído branco numa floresta silenciosa. Eu não estava entediado, mas também não conseguia me lembrar da última vez em que havia simplesmente olhado para uma janela por muito tempo, sem estar me movendo em alta velocidade num trem ou avião. Eu também não conseguia me lembrar da última vez em que havia passado 24 horas de uma viagem sem absolutamente nada planejado.

 

“O tédio costumava ser uma palavra desagradável”, me disse o CEO da Getaway, Jon Staff, quando voltei. “Mas no nosso mundo sempre conectado e sempre ligado, corremos o risco de perder esta experiência especial, que inspira a criatividade, a reflexão e a empatia”.

 

“Sem a oportunidade de ficarmos entediados, pode ser que nunca tenhamos percepções importantes sobre nós mesmos, sobre nossa próxima grande ideia, e pode ser que não consigamos nos conectar com aqueles que são realmente importantes para nós”.

 

Não é novidade que, para um graduado na Escola de Administração de Harvard, Jon tem dados para apoiar seu mantra de se desconectar em um ambiente natural. Uma pesquisa que ele me enviou explicava: “A natureza restaura os processos executivos mediados pelo córtex pré-frontal, como a atenção seletiva, a resolução de problemas, a inibição e a multitarefa”. Também há evidências de que a sobrecarga digital prejudica a nossa memória. Ele escreveu: “A distração faz com que seja difícil armazenar lembranças: quando nós não estamos prestando atenção, temos dificuldade para acessar esta memória, mais tarde”.

 

Muitos dos resultados da pesquisa de Jon estão relacionados a questões enfrentadas pelos norte-americanos, atualmente. Há cerca de 40 anos, 80% dos trabalhadores fazia uma viagem de férias anual de uma semana. Em 2018, este número caiu para 56%. De acordo com uma pesquisa recente, realizada pelo monster.com, um em cada cinco norte-americanos afirma nunca relaxar completamente durante as férias.

 

Após passar apenas duas noites no Getaway, não acho que atingi o verdadeiro tédio, a autorrealização, nem que esteja mais perto de definir o enredo do meu primeiro livro. Assumo que nós não meditamos e não fizemos ioga, e acabamos pegando o carro para dirigir por aí e fazer uma caminhada. No entanto, nos momentos de vazio, sem planos, dentro da cabana – lendo pela manhã, ficando hipnotizado com a vista, esquecendo o tempo, cozinhando lentamente no fogão – me permitiram saborear os efeitos fascinantes de curtir o tédio durante as férias.

 

 

Greg Dickinson

Justen Celulares