Rui Car
09/07/2018 12h30 - Atualizado em 09/07/2018 09h07

Canarinho Pistola: por que nos identificamos tanto com ele?

Nossa admiração tem a ver apenas com futebol ou o mascote expressa a forma como nós brasileiros gostaríamos de agir, mas não podemos?

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Se durante outras edições da Copa do Mundo o brasileiro se contentou em ver um mascote da Seleção Brasileira fofo e amistoso, após conhecer o Canarinho, representante nessa Copa do Mundo da Rússia, – com cara invocada, testa franzida e jeito de malandro, – o povo parece não aceitar mais nada menos que isso.

 

 

A nova versão do Canarinho foi lançada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em outubro de 2016, em Natal. A estreia se deu em um jogo entre Brasil e Colômbia. Na época, havia dúvida sobre a receptividade do mascote perante o público. Tanto que a CBF havia criado uma versão mais “boazinha” do personagem para ir em escolas e eventos. No entanto, a decisão do público já estava tomada: o Canarinho com cara de quem está p…. da vida se tornou paixão nacional.

 

Foto: Twitter @CBF_Futebol
Foto: Twitter @CBF_Futebol

 

Nas redes sociais, o personagem ganhou o apelido de “Canarinho Pistola”. O termo pistola passou a ser usado em referência a uma pessoa que com um comportamento, digamos, mais irritadiço e bravo. E não demorou para que fossem criados perfis e memes inspirados no mascote. O perfil no Twitter “@canariopistola” conta com mais de 59 mil seguidores. No Facebook, o mesmo perfil conta com mais de 36 mil seguidores.

 

O sucesso do personagem não é à toa. As publicações feitas pelo Canarinho Pistola e os memes inspirados nele criaram uma personalidade ao mesmo tempo irreverente e cativante, duas qualidades que nós brasileiros adoramos. Primeiramente, ele é apaixonado por futebol: em seus posts é comum vê-lo fazendo comentários xingando os jogadores de outras equipes e os da seleção também. Além disso, ele é bom de jogadas e em suas aparições é possível vê-lo fazendo embaixadinhas e tirando uma onda com a bola. Para falar a verdade, é difícil haver um momento em que o Canarinho Pistola não esteja fazendo uma zoeira ou sacaneando alguém (de preferência algum adversário do Brasil na Copa do Mundo).

O doutorando em cibercultura Marcel Ayres, da Universidade Federal da Bahia, explica que o Canarinho da seleção se tornou um elemento de identificação para o público brasileiro por meio de diferentes formatos, como imagens, frases, gifs e vídeos, construindo em torno da imagem do mascote um sentido compartilhado. “Além de uma identificação direta com o canarinho, devido o apelido da nossa seleção (fruto da cor amarela do seu uniforme oficial), há, também, uma identificação do público com a postura e a expressão facial do mascote, que foge de uma postura passiva e dócil e comunica uma postura de coragem e audácia, aspectos que o torcedor espera de um time em meio a uma competição”, completa.

 

 

Quem viveu o drama de ver o Brasil perder de 7 a 1 para Alemanha jogando em casa de fato espera que a seleção entre em campo seguindo o exemplo do Canarinho: pistola. No entanto, será que a identificação do público com o jeito pistola do Canarinho da Seleção se dá apenas por uma questão esportiva ou seria algo além disso?

 

O brasileiro está pistola?

O ano de 2018 não está sendo um dos mais fáceis para o povo brasileiro em diferentes setores. A conjuntura política é cercada de escândalos e incertezas, os direitos sociais são subtraídos, o desemprego em alta, preço da gasolina disparando, medo da violência. Em contrapartida, falta tempo, dinheiro e oportunidades para os brasileiros serem felizes. A combinação destes fatores tem influenciado de forma direta no emocional da população.

 

De acordo com a psicóloga Sharon Feder, também coach da Care Evolution, o momento delicado que o brasileiro vive e as microagressões diárias as quais a população é submetida tem deixado a população mais estressada, amargurada e sem paciência. Em outras palavras, o brasileiro está pistola.

 

Internet: o divã dos pistolas

De acordo com Ayres, o Brasil é um dos países que mais utiliza as mídias sociais no mundo, tanto em volume de usuários quanto em tempo de utilização destas mídias. E se tem algo que o brasileiro gosta de fazer na internet é reclamar. Mas nossa reclamação não se manifesta de forma cabisbaixa e derrotada, a gente gosta de fazer piada com a própria condição. Memes, gifs, vídeos e postagens nas redes sociais são ferramentas utilizadas pelos brasileiros para propagar a “zoeira”.

 

Esse bom humor do brasileiro tem uma explicação. De acordo com Sharon, a teoria Freudiana acredita que o humor pode ser uma ferramenta de defesa para lidar com situações difíceis. Sendo assim, o bom humor foi o mecanismo que o povo brasileiro encontrou para amenizar as mazelas rotineiras.

 

 

Em um País em que as pessoas utilizam o comportamento cômico para manifestar sua indignação e rir de sua condição, ver que o mascote oficial que representa o Brasil no maior evento futebolístico do mundo tem em sua personalidade essas características ajuda a criar um elemento de identificação.

 

“O rosto e a personalidade do Canarinho Pistola foram inspirados nos momentos que o povo brasileiro vive atualmente. Ver as situações que o Canarinho Pistola passa é uma forma de aliviar nossa tensão, é quase uma sátira da vida”, explica Sharon.

 

O diretor de marketing da CBF, Gilberto Ratto, disse, em declaração à imprensa, que o mascote havia sido criado dessa forma de propósito, , para criar esse elemento de identificação com brasileiro. De acordo com ele, o objetivo era falar com os jovens. Sendo assim, os criadores fizeram uma pesquisa sobre o comportamento desta nova geração e concluíram que não poderia ser um personagem dócil.

 

Canarinho pistola fala por nós?

Em nossa rotina somos submetidos a pequenas agressões diárias. Um desentendimento com um parente, o abuso de autoridade por parte dos chefes, as dificuldades de locomoção para chegar ao trabalho, uma mensagem ignorada um gesto de carinho não correspondido, a dificuldade em manter o orçamento da família são algumas das situações brutais que nos machucam, mas que não nos derrubam. Seguimos em frente.

 

Na contramão das nossas atitudes, está o personagem Canarinho Pistola. Diferentemente de alguns de nós que se calam diante das pressões diárias, ele não leva desaforo para casa. Em suas postagens, o Canarinho fala mal dos jogadores da seleção brasileira, faz piada com os jogadores de outros países, xinga personalidades famosas, reclama que está sem dinheiro e fala palavrões.

 

 

“Ele fala e faz o que nós gostaríamos de fazer, mas não podemos, devido às convenções sociais e aos filtros que são colocados no comportamento. No entanto, quando isso vem de um personagem, ganha uma outra conotação, como se fosse algo permitido”, explica Sharon.

 

Estamos (muito) pistolas e isso não é bom

Fazer piada com os acontecimentos é uma forma de amenizar a brutalidade dos dias. Somos conhecidos como um povo alegre, que não se deixa abalar, que mesmo diante da dificuldade mostra um sorriso no rosto, as metáforas são muitas. Mas será que somos tão alegres quanto acham que somos ou apenas escondemos nossos desconfortos atrás da face da comédia?

 

Difícil responder essa pergunta. Na verdade é uma análise muito pessoal e cabe a cada um procurar a resposta dentro de si. No entanto, de acordo com um levantamento feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o País que tem a maior taxa de depressão da América Latina.

 

Nós também estamos em primeiros no ranking de ansiedade em comparação aos outros países da América Latina.

 

“Às vezes enxergar tudo de forma jocosa mostra uma falta de objetividade para lidar com as próprias questões, dificultando a possibilidade de transformação. Se queremos que a situação de nosso País melhore, por exemplo, precisamos ter habilidade para lidar com nossas questões internas. Isso não significa que precisamos ser mau humorados, mas sim olhar com seriedade para nossa vida”, explica a psicóloga.

 

 

Chegar a essa conclusão sozinho pode ser difícil e doloroso em alguns casos. Mas uma forma de identificar que algo não vai bem é pensar como seria lidar com a situação se não fosse possível fazer piada. Por exemplo, você conseguiria lidar com a rotina do seu trabalho se não fizesse piadas sobre a situação?

 

Enxergar tudo com os olhos da comédia pode fazer com que se perca a noção de respeito. Existem inúmeros casos na internet de pessoas que ao tentar fazer um comentário irônico foram desrespeitosos, evidenciando atitudes machistas, racistas, lgbtfóbicas, xenófobas e elitistas. Um caso recente foi o do influenciador digital Júlio Cocielo, que virou alvo de críticas e foi acusado de ter uma postura racista ao escrever em seu Twitter que o jogador da seleção da França Mbappé “conseguiria fazer arrastões top na praia”.

 

Caso você perceba que o comportamento pistola possa ser na verdade uma forma de esconder sentimentos de amargura, intolerância e deboche excessivo, vale a pena procurar ajuda especializada, pesquisar e conversar com pessoas que atuem no combate à discriminação. Não há problema em sermos bem humorados e até mesmo pistolas, só não podemos perder a ternura e o bom senso.

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