Rui Car
01/02/2023 16h22

Audiência pública sobre barragem em José Boiteux termina com frustração e incertezas

Encontro sobre a maior estrutura de contenção de cheias de Santa Catarina reuniu dezenas de indígenas e integrantes da Defesa Civil

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Barragem Norte, em José Boiteux (Foto: Patrick Rodrigues)

Barragem Norte, em José Boiteux (Foto: Patrick Rodrigues)

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A audiência pública feita em José Boiteux para discutir um dos aspectos da barragem não terminou como se esperava. O encontro foi marcado para apresentação do plano de contingência para inundação, que trata dos procedimentos e assistência às aldeias quando a água sobe no reservatório. De um lado, os indígenas esperavam saber de obras e compensações aos prejuízos provocados pela estrutura na terra demarcada. De outro, o Estado também não ouviu o que queria da comunidade.

 

A Secretaria de Estado da Defesa Civil esteve em peso na Escola Laklãnõ — inclusive com o chefe da pasta, o coronel Luiz Armando Schroeder. Os moradores aproveitaram a audiência para deixar claro ser contra as obras na barragem de José Boiteux até que o governo de Santa Catarina cumpra obrigações definidas em acordos anteriores. Uma ação do Ministério Público Federal, de 2015, vale lembrar, determinou a construção de escola, igreja e melhoria em pontes, danificadas por erosões provocadas pela estrutura. Até hoje não foi cumprido.

 

Houve frustração dos dois lados. Os indígenas ficaram sem saber quando terão os pedidos atendidos e o Estado com a incerteza se vai conseguir autorização para entrar na comunidade para fazer as obras. A licitação para o canal extravasor está pronta e depende apenas da retirada de um sítio arqueológico para começar. Já a reforma geral da estrutura em si, como casa de máquinas e comportas, precisa ser relançada após um erro na publicação do edital.

 

Foto: Patrick Rodrigues / Santa

 

No debate de expectativas e realidades, a audiência durou praticamente a tarde toda nesta terça-feira (31). Nem mesmo o calor escaldante afastou a comunidade de participar do evento e ouvir o que a Defesa Civil de Santa Catarina tinha a falar — algumas pessoas chegaram até a ficar fora da área coberta. Em resumo, o Estado explicou que a partir de agora há protocolos a serem seguidos a partir do momento que o nível de água na barragem chegar aos 13 metros. Quando a inundação começar a interferir na mobilidade dentro das aldeias, serão fornecidos ônibus e cestas básicas aos moradores.

 

O acesso das crianças à escola em períodos de chuva, quando pontos da estrada ficam alagados por causa da estrutura, também foi levantado pela comunidade. No ano passado, a prefeitura precisou suspender o atendimento aos alunos em virtude das condições das ruas, que são de barro, e os moradores alegam pouca manutenção. O secretário de Defesa Civil disse que o Estado irá auxiliar a prefeitura neste aspecto, mas os moradores cobraram que o compromisso seja firmado oficialmente.

 

Com os cabelos brancos que não deixam esconder o avançar da idade, Vile Ndili, ancião da comunidade Xokleng Laklãnõ, fez questão de usar a palavra para dizer que a situação se arrasta há muito tempo e muitas promessas foram feitas ao longo dos anos. O histórico pode justificar o temor da comunidade indígena de ser abandonada após as obras na barragem.

 

Nós esperávamos que vocês viriam aqui para concluir a ponte do Bueiro, da Palmeirinha, mas não falaram nada disso. Vocês falaram de cesta básica, querem colocar nós lá embaixo, tratar de colherzinha. Não estamos pedindo migalhas, estamos pedindo direitos. Queremos outras propostas. Nós concordamos de arrumar a barragem, mas desde que nos paguem as coisas justas“, pontuou o ancião.

 

O cacique-presidente da Comunidade Indígena Xokleng Laklãnõ, Tucum Gakran, usou um tom mais apaziguador. Na visão dele, os compromissos firmados anteriormente serão cumpridos e diante disso não haverá nenhuma objeção quanto às obras.

 

O mais importante que a gente queria é o estudo de impacto socioambiental, que já está pronto, só falta o detalhamento“, disse.

 

O secretário de Defesa Civil de Santa Catarina diz que o Estado reconhece as demandas da comunidade e que fará o possível para superar o impasse e colocar a estrutura em condições seguras de funcionamento.

 

Para tentar resolver a situação o quanto antes, coronel Armando afirma que pretende marcar novas reuniões com a comunidade Xokleng e os demais departamentos envolvidos o mais breve possível. Até lá, a possibilidade de começar a reforma da barragem fica com o freio de mão puxado.

 

[A reunião] nos mostrou que ainda estamos longe da solução que queríamos. […] Vamos conversar com o governo federal para segurar um pouco essa obra“, disse o coronel Armando após a audiência.

 

Problema de décadas

 

O problema enfrentado hoje começou no momento em que a barragem foi construída pelo governo federal. Isso porque a estrutura foi feita dentro de uma terra indígena legalmente demarcada e, à época (nos anos 1970), sem estudo de impacto ambiental para fazer compensações à comunidade. Os indígenas alegam perdas de terras produtivas e de casas, além de a aldeia se dividir em várias e pessoas morreram nas inundações.

 

Ao mesmo tempo, a barragem se tornou a ferramenta dos indígenas para fazer as reivindicações. Houve acampamento em frente à estrutura, com a Defesa Civil sendo impedida de entrar no local. Sem operação, a barragem chegou a ser depredada e os maquinários sumiram. Atualmente, as comportas só podem ser fechadas ou abertas com o uso de caminhão hidráulico.

 

Exemplo de diplomacia

 

Apesar das expectativas frustradas de ambos os lados na audiência pública desta terça-feira (31), o que se viu foi um exemplo de diplomacia.

 

Os questionamentos da comunidade indígena foram respondidos, por vezes até com intervenção do próprio secretário de Defesa Civil, reafirmando a posição do Estado em solucionar os entraves. Na outra ponta, as explanações dos moradores foram feitas com educação e respeito.

 

Diferente de outros momentos, em que a polícia se fez presente, o encontro não tinha agentes de segurança.

 

O que prevê o plano de contingência

 

O documento apresentado nesta terça-feira (31) traz a ativação escalonada do plano atrelada à medição do nível da água, já a partir dos 13 metros, quando começa o envio de SMS alertando a comunidade. Quando a medição apontar 15 metros, ou seja, com estradas alagadas, a comunidade passa a receber cestas básicas e contar com apoio de dois ônibus de transporte caso precisem sair de lá. Os horários de saída e retorno estão estabelecidos no plano.

 

Já aos 19 metros, os principais acessos à localidade estão interrompidos e passam a ser usadas rotas de fuga. Considerando necessidades de saúde, botes devem ser disponibilizados para levar os moradores ao encontro de ambulâncias e três locais estão mapeados para o pouso de helicóptero de resgate. A partir dos 39 metros, começa a evacuação das famílias, sendo levadas para abrigos.

 

O documento deve passar por revisão anualmente. Uma cópia foi entregue ao cacique de cada uma das nove aldeias que compõem a Terra Indígena Xokleng-Laklãnõ.

 

Mas como ficam as outras reivindicações?

 

De acordo com o secretário da Defesa Civil de Santa Catarin, o governo do Estado vai buscar recursos próprios para atender às exigências feitas em ação civil pública pelo Ministério Público Federal, que prevê casas, igrejas, escola, e melhorias de infraestrutura.

 

Já as indenizações, tão almejadas pelos moradores locais, devem ser definidas a partir do levantamento de impacto socioambiental. O estudo já começou e deve passar a ser detalhado junto com os caciques de cada aldeia, para então seguir para aprovação e, no futuro, se estabelecer quem vai fazer esses pagamentos.

 

A barragem de José Boiteux é uma obra do governo federal e foi repassada para a Defesa Civil de Santa Catarina fazer a operação, gerando conflito de responsabilidades.

 

Fonte: Talita Catie / Jornal de Santa Catarina / NSC Total
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