Rui Car
30/10/2017 10h00 - Atualizado em 30/10/2017 10h32

Fé e trabalho: Como o luteranismo influenciou a formação da identidade do catarinense

A religião surgiu a partir de 31 de outubro de 1517

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Os luteranos são poucos – 213 mil em Santa Catarina, segundo o Censo de 2010. Mas tiveram uma influência na formação da identidade do catarinense muito maior do que os 3,5% que representam da população local. Tanto que o estereótipo do nativo do Estado como uma pessoa trabalhadora, ordeira e apegada à tradição se confunde com as características atribuídas aos colonizadores alemães, dos quais a maioria seguia a religião surgida a partir de 31 de outubro de 1517. Quinhentos anos depois de Martinho Lutero ter literalmente pregado as 95 teses que dividiriam o cristianismo na porta da igreja do castelo de Wittenberg, na Alemanha, os ideais da Reforma Protestante continuam atuais.

 

As principais críticas do monge alemão miravam nas indulgências vendidas pela Igreja Católica na época. Por esse método, qualquer um podia ofertar uma quantia para determinada paróquia, por exemplo, em troca de uma carta da autoridade eclesial perdoando seus pecados. Lutero bateu forte na prática, que considerava “negociação da salvação”. No entanto, apesar de contestar sobretudo o poder papal, suas observações provocaram mudanças que extrapolaram o âmbito da fé.

 

– Lutero lutou muito pelo ensino, pelos direitos sociais e pelas liberdades individuais. Para ele, a educação era fundamental para o avanço da sociedade, meninos e meninas deveriam ter acesso à escola e a consciência do cidadão limitaria as autoridades políticas e religiosas – diz o pastor Aldo Beskow, 59 anos, 30 dos quais servindo em Pomerode.

 

O gaúcho da Colônia Cerrito (atualmente parte do município de Arroio do Padre) chegou ao município com a esposa, professora de alemão e de português, e a filha pequena tão logo foi ordenado. Encontrou “uma paróquia muito grande com apenas um pastor para atendê-la”. O contingente de fiéis permanece grande: a dita “cidade mais alemã do Brasil” é também a mais luterana de Santa Catarina, credo adotado por 46% dos 32 mil habitantes, conforme dados de 2014 do Sínodo do Vale do Itajaí. Para atendê-los, atualmente há nove pastores e uma pastora distribuídos em cinco comunidades.

 

Beskow pertence à Igreja Evangélica da Confissão Luterana do Brasil (IECLB), uma das duas entidades que coordenam a religião, ligada ao movimento migratório europeu e com 80% dos fiéis. A outra é a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), fruto do envio de missionários dos Estados Unidos para evangelizar os colonos. Entre as diferenças entre elas está a celebração da Santa Ceia – aberta para qualquer pessoa na IECLB, restrita a membros da igreja na IELB – e a ordenação de mulheres, permitida somente pela primeira.

 

De acordo com o pastor, as igrejas são autossustentáveis, mantidas por meio de contribuições “muito menores do que o dízimo”: R$ 240 anuais por pessoa. Um décimo do que é arrecadado vai para os sínodos, o equivalente à arquidiocese para os católicos. A IECLB é dividida em 18 deles, sendo quatro em Santa Catarina: Centro-Sul, Norte, Uruguai (Oeste do Estado) e Vale do Itajaí, o maior do Brasil, com 85 mil integrantes. As decisões são tomadas pelo concílio e o pastor-presidente é o guia espiritual.

 

Pelo exercício pastoral, Beskow tem direito à casa paroquial e a um carro funcional, um Palio 2008 com 122 mil quilômetros rodados. Como salário – denominado “subsistência ministerial” –, recebe o piso estipulado pela IECLB, R$ 5.400, reajustado anualmente pelo Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M) e complementado com um abono que não pode passar de 77%, a remuneração do pastor-presidente da entidade, Nestor Paulo Friedrich. Ele pede para não revelar de quanto é o percentual extra de sua renda para evitar comentários, mas, como todo luterano que se preze, tem uma relação muito bem-resolvida com o dinheiro.

 

– Na medida que a gente vive neste mundo, tem que seguir as regras deste mundo, como pagar as contas – atesta.

 

Os alemães começaram a aportar no Brasil a partir de 1824, a reboque da independência proclamada por D. Pedro I dois anos antes. A vinda de imigrantes europeus atendia aos interesses do Império em ocupar áreas pouco povoadas para garantir a posse do território nacional, “embranquecer” a população formada majoritariamente por negros e mestiços, criar uma classe média de agricultores e engrossar o Exército. Para atraí-los, o governo acenava com passagens gratuitas e lotes de terra, além de bois, cavalos, vacas, sementes, ferramentas e subsídios pagos até o início da colheita. Em 1830, porém, os incentivos foram cortados.

 

Esse foi apenas um dos fatores que pode ter impedido que a quantidade de luteranos em Santa Catarina fosse maior. De acordo com o professor de História da UFSC João Klug, especialista no tema, houve outros empecilhos. O primeiro ocorre justamente do período em que chegaram ao Estado, no século 19. Embora alguns protestantes já tivessem se estabelecido junto de uma maioria católica em 1829 em São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis, a primeira comunidade efetivamente luterana foi criada no ano de 1847 na localidade de Santa Isabel, hoje pertencente aos municípios de Águas Mornas e Rancho Queimado.

 

O problema para esses colonos é que, nas décadas seguintes, eles ficaram sem um representante oficial da igreja para realizar cultos e atuar como guia espiritual. A solução foi encontrada na nomeação de pastores-colonos: geralmente pessoas com mais instrução, escolhidos pelas próprias comunidades. Afinal, como lembra Beskow, “todo aquele que foi batizado é um ‘sacerdote-geral'”. Tudo isso em um contexto em que o catolicismo era a religião do Estado.

 

– Até a República, o máximo que se pode dizer é que outras religiões eram toleradas. Você tinha uma igreja luterana sobrevivendo, já que a oficial era outra – afirma Klug.

 

No Vale do Itajaí, o primeiro pastor vindo da Europa apareceu em 1857 para atender toda a região, que já contava com uma população luterana significativa desde a fundação da Colônia Blumenau, oito anos antes. Daí em diante, Joinville (1851), Florianópolis (1864), Brusque (1865), Brüderthal, entre Guaramirim e Jaraguá do Sul (1886), e São Bento do Sul também ganharam sacerdotes.

 

Nesse período, conta o professor Klug, os luteranos chegaram a ser perseguidos, já que seus casamentos não tinham validade legal e nem mesmo podiam ser enterrados nos principais cemitérios, que eram benzidos por sacerdotes católicos e, portanto, não poderiam receber os adeptos de outros credos. No caso dos casamentos com algum católico, era necessário assinar um documento abdicando de passar a religião protestante para os filhos.

 

– A depender do bispo da região, essa perseguição ocorria em maior ou menor grau. Mas não era raro casos em que os luteranos eram literalmente humilhados – conta o professor.

 

O segundo grande golpe no protestantismo secular, e talvez o mais forte, veio no período da ditadura de Getúlio Vargas, em especial após o Brasil ter declarado guerra à Alemanha de Hitler na Segunda Guerra Mundial. A partir desse momento, o alemão, e por consequência o luterano, passaram a ser vistos como inimigos. O que se seguiu foi uma repressão brutal: proibição das línguas germânicas, fechamento da rede de escolas alemãs e uma criminalização não-oficial dos seguidores da igreja de Lutero. As marcas desse processo forçado de “nacionalização” continuaram vivas pelas décadas seguintes, com muitos luteranos escondendo a sua fé.

 

– Foi um grande baque na igreja. Eles viviam o que eu chamo de comensalismo institucional, com a igreja e a escola dependendo uma da outra – opina.

 

Diante desse quadro, Klug diz não ter dúvidas de que poderia haver muito mais luteranos no Estado do que é verificado hoje. E ele usa um dado para arrematar: dos imigrantes alemães que vieram para Santa Catarina no século 19, cerca de 60% tinham fé luterana, contra 40% de católicos. Como a população de origem alemã supera os 2 milhões, fica claro que o número de luteranos está aquém em termos históricos.

 

Maior autoridade religiosa do Vale do Itajaí, o pastor sinodal Breno Carlos Willrich, 53 anos, concorda que a perseguição ao longo do tempo ajudou a reduzir o número de fiéis, mas não fica por aí. Ele também faz uma autorreflexão e diz que o luteranismo em Santa Catarina se fechou muito entre a população de origem germânica e não soube se integrar com o resto dos catarinenses e “amar os caboclos”.

 

– Acabamos nos fechando muito em nós mesmos e tivemos dificuldades em assimilar pessoas que não tinham a mesma origem étnica. É uma dívida histórica. Sempre fomos vistos como uma igreja de alemães e não nos abrimos para os de fora.

 

O pastor fala ainda que a atual geração, filha de luteranos, conseguiu fazer melhor essa assimilação e, por isso, já não se sente familiarizada com a religião:

 

– Não oferecemos o que eles (jovens) buscam em uma igreja, justamente porque não conseguimos nos misturar o suficiente a essa sociedade.

 

Encarar esse cenário é justamente o maior desafio atual da igreja. Mas Willrich, cujo mandato como pastor sinodal vai até o ano que vem – na igreja luterana, os líderes regionais são eleitos para um mandato de quatro anos, com possibilidade de uma reeleição –, acredita que a saída está justamente no que ele julga ser o ponto forte da religião: a diaconia, capacidade de servir ao próximo. Esse aspecto, aliás, já é muito forte no luteranismo, que mantém escolas, asilos e hospitais. Entretanto, acredita o pastor, pode ser ainda mais expandido.

 

— As nossas características (de origem alemã) devem ser valorizadas, mas não limitadoras. Acredito, sim, num crescimento da igreja. Temos muito a contribuir com a sociedade. Com a nossa teologia de que não há negociação com Deus. Ele já nos deu tudo em Jesus Cristo. Cabe a nós servimos a Ele com o amor ao próximo, pensando sempre na vida comunitária.

 

Outra questão recorrente tem como alvo não a reclusão dos luteranos, e sim um suposto antissemitismo de Lutero, por conta de alguns textos não lisonjeiros que ele escreveu sobre os judeus. A IECLB se manifestou a respeito na carta pastoral “Discriminação”, de 1988, e na declaração “Deus Não É Racista”, de 1992, que interpreta de forma crítica as afirmações do monge sobre o assunto.

 

— Não dá pra fechar os olhos para a história. No tribunal de Nuremberg (depois da Segunda Guerra), muitos oficiais nazistas repetiram: não falamos nada daquilo que Lutero não tenha falado. Mas a posição de Lutero contra os judeus tinha um teor teológico, não racial. Ele os condenava por terem rejeitado a figura de Jesus Cristo – diz Klug.

 

Em 2011, a IECLB acatou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que passou a reconhecer a união afetiva de homossexuais como “entidade familiar”. O aborto, porém, recebeu um parecer mais rígido: “Não podemos concordar, portanto, que se dê à gestante sozinha o direito de decidir sobre a interrupção da gravidez, nem podemos permitir que seja coagida pelo parceiro, pela família ou pela sociedade. O aborto não pode ser simplesmente liberado, nem pode ser adotado como método de controle populacional”, declarou a entidade em 1997. Polêmicas à parte, a religião se mostra bem flexível em alguns aspectos.

 

– A partir da reforma, nós prezamos muito a liberdade das pessoas. Não há obrigação de frequentar cultos, jamais forçamos. Por outro lado, isso também é um desafio, porque muitos membros não entendem essa liberdade e se tornam negligentes. Então há um trabalho constante de divulgação e esclarecimento para que os fiéis continuem conosco e tragam novos tripulantes para o barco. Porque não fazemos proselitismo religioso, não pescamos em açude alheio – garante o pastor Beskow.

 

Essa liberdade, segundo ele, traduz-se na ética da responsabilidade e se expressa na participação na vida comunitária e na contribuição financeira. As pessoas são orientadas e estimuladas a tomar as suas próprias decisões diante de Deus e do próximo – sempre observando, claro, os valores evangélicos. Não existe tutela eclesiástica relacionada ao exercício da cidadania dos fiéis em movimentos sociais, organizações, partidos políticos ou administração pública.

 

A hierarquia da igreja, mais horizontal, reflete essa postura. Não há bispos, arcebispos, cardeais. Na liturgia, não há santos, embora eles sejam reconhecidos como exemplos de vida, não como intermediários entre Deus e os homens. Também não há epifanias ou milagres. Tampouco promessas, “porque não se faz barganha com Ele”.

 

– Nem adotamos a “teologia da prosperidade” de certos cultos evangélicos atuais que nem merecem ser chamados de igrejas. Elas se comportam como se Deus tivesse a obrigação de prover algo. É a venda de indulgência tão condenada por Lutero, só que com outro nome: “Se você contribuir com tanto, Deus vai te ajudar”.

 

Na última estimativa do IBGE, os evangélicos já representavam aproximadamente 22%, ou 45 milhões de pessoas. Dentre as mais variadas vertentes, os mais numerosos, sem sombra de dúvida, são os pentecostais e neopentecostais. Mas esses “novos evangélicos” – em relação aos “clássicos”, os luteranos, presbiteranos e anglicanos – são pouco influenciados pela Reforma Protestante. Pelo menos é o que diz o professor João Klug.

 

— Esse crescimento das igrejas pentecostais e neopentecostais nada tem a ver com o luteranismo. É o crescimento de um modelo de protestantismo autóctone. O protestantismo histórico é mais racional e menos emocional.

 

Enquanto “na Igreja Católica é preciso subir uma escada até ser aceito por Deus, tem que merecer isso”, no luteranismo o Criador não está lá em cima, acrescenta Beskow. O fiel pode se dedicar a servir a Deus na família, na sociedade, no trabalho. Lutero inclusive chegou a inventar uma palavra para isso, beruf, que significa “profissão e vocação”. Se os portugueses achavam que trabalho era “coisa de escravo”, os protestantes tinham a consciência de que esse é o único jeito de progredir.

 

– É o que vai levar à melhoria das condições de vida das pessoas. A graça divina é aproveitar este mundo que Deus colocou à nossa disposição, viver e deixar viver.

 

O empresário pomerano Marcos Fritske, 48 anos, não precisou de tantas respostas. Ou melhor, nunca fez tantas perguntas. Filho de luteranos, luterano nasceu, luterano permaneceu – sem forçar a esposa, católica, a se converter. Aos dois filhos, um de 18 e outro de 13, costuma ensinar que “Deus é um só”. Com o gerente comercial Fabiano André Dahlke, 39, ocorreu o contrário. Católico de Blumenau, enamorou-se por uma luterana de Pomerode e adotou a religião dela quando casaram. Tudo muito simples e rápido: o pastor o chamou, disse que ele iria fazer parte da comunidade e pronto, sem maiores rituais.

 

– A gente não procura personalizar a crença em uma imagem, a fé é mais espontânea – diz.

 

 

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