Rui Car
11/07/2021 11h09 - Atualizado em 11/07/2021 16h20

Santa Catarina vira protagonista da discussão sobre o marco temporal de terras indígenas no Brasil

Em 25 de agosto, o Supremo Tribunal Federal retoma a votação da ação que se baseia em um pedido de reintegração de posse apresentado pelo Governo de SC

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Barragem Norte, em José Boiteux (Foto: Patrick Rodrigues / BD)

Barragem Norte, em José Boiteux (Foto: Patrick Rodrigues / BD)

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A Constituição do Estado de Santa Catarina possui artigos e capítulos que falam de questões indígenas. Trata-se de um avanço, se comparado com outros estados, como o Acre, por exemplo, onde mesmo tendo até índios isolados não faz menção a esses povos. Nos últimos tempos, o Estado passou a ser citado com frequência no tema demarcação de terras indígenas a partir do chamado “marco temporal”. Ocorre que está para ser julgada no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação de reintegração de posse contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem famílias de Guarani e Kaingang.

 

Pelo “marco temporal”, os índios só têm direito ao território se estivessem sobre ele em 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal. A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Ibirama, Vitor Meireles, José Boiteux, Doutor Pedrinho e Itaiópolis. A ação judicial, impetrada por agricultores não indígenas e uma empresa madeireira, tem como assistentes o governo do Estado e o Instituto do Meio Ambiente (IMA). A União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) são as rés.

 

A defesa dos Xokleng alega que os índios à época não estavam nos cerca de 38 mil hectares – e sim 14 mil hectares – devido às perseguições históricas que sofreram. No bojo da ação, o Estado disputa uma área de cerca de 3,8 mil hectares onde há sobreposição entre terra indígena e reservas biológicas. Este aparente protagonismo catarinense pode custar caro aos povos indígenas de todo o país, pois o caso tem repercussão geral. Isso significa que a decisão do STF servirá para que a Justiça balize o entendimento sobre outros conflitos envolvendo territórios tradicionais no país.

 

Mas por qual motivo o SC está envolvida nesta questão? O procurador-geral do Estado, Alisson de Bom de Souza, explica que a PGE atua nas questões relativas às terras indígenas baseada em dois aspectos: o princípio do respeito federativo – o qual garante a participação do Estado de Santa Catarina nos processos de demarcação de terras indígenas dentro do seu território – e o da segurança jurídica. 

 

A PGE defende o marco temporal conforme jurisprudência do STF no célebre caso da TI Raposa Serra do Sol, e que leva em conta a data da promulgação da Constituição Federal. Alguns segmentos, no entanto, criticam a posição do governo catarinense que movimenta a máquina do Estado para defender os interesses de alguns catarinenses (agricultores e empresa que move a ação) contra outros catarinenses (2,3 mil pessoas) que historicamente vivem numa situação de vulnerabilidade social. 

 

O procurador tem outro entendimento: 

 

Queremos uma solução harmonizadora de interpretação constitucional de que haja proteção às comunidades indígenas na exata medida do tempo constitucional, assim como também das comunidades históricas que muitas vezes têm direito a propriedade sobre as terras que ocupam“, diz Souza.

 

Para Alisson de Bom de Souza, “ao defender o fiel cumprimento da Constituição Federal, a PGE está defendendo toda a sociedade catarinense para que em Santa Catarina tenhamos uma sociedade livre, justa e solidária”, como determina a Constituição Federal.

 

Não conto com STF negar o texto constitucional”, diz jurista

 

Deborah Duprat é uma das juristas mais reconhecidas no país. Em maio do ano passado ela se aposentou do Ministério Público Federal (1987 a 2020), depois de ter sido vice-procuradora-geral da República (2009 a 2013) e exercido interinamente o cargo de procuradora-geral em 2009. Inscrita na OAB-DF, ela atua no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 como advogada pro bono (sem cobrança de honorários) da Associação Juízes para a Democracia (AJD), que ingressou no feito na condição de amiga da Corte.

 

Em 10 de junho, ela fez sustentação oral no plenário virtual do STF. Para a AJD, o marco temporal irá legitimar o genocídio indígena, a destruição das florestas e acarretará uma tragédia humanitária. Ao Diário Catarinense, Deborah explica que o estabelecimento de uma data final para o exercício de um direito fundamental – como é a questão da territorialidade indígena, que conforma a própria identidade individual e coletiva dos membros do grupo – já é em si bastante discutível.

 

Mas o problema maior é estabelecer um “marco temporal” sem contextualizá-lo no projeto colonial que se estendeu até 1988, sem observar que houve violência e seguidas desterritorializações de povos considerados até então relativamente incapazes, que dependiam de órgãos tutelares.

 

A advogada lembra que o STF, ainda na vigência da Constituição de 1967, reconheceu aos índios Krenak, de Minas Gerais, em 1994, o seu território, do qual tinham sido expulsos. Ela atuou na questão da demarcação da Terra Indígena Roposa Serra do Sol, em Roraima. Faz ressalvas quando se compara com o território Ibirama-Laklãnõ.

 

No caso Raposa Serra do Sol, o que foi decidido é que as terras indígenas, de acordo com a definição do § 1º do art. 231 da CF, devem acumular quatro atributos: local de moradia, local da atividade produtiva, recursos ecológicos necessários ao bem-estar do grupo e espaço necessário à sua reprodução física e cultural. Também ali se decidiu que não era obrigatória a presença física em todos esses locais. Bastava um deles. Então, o marco temporal para definir a ocupação em alguma dessas porções territoriais era razoável: 

 

Na sequência desse julgamento, começaram a analisar o requisito do marco temporal em cada um desses espaços territoriais isoladamente, e excluir aqueles onde não houvesse ‘posse indígena’. Um outro problema é que passaram a considerar a ‘posse indígena’ a partir do direito civil, e não na perspectiva de cada grupo, o que é uma exigência em uma sociedade pluralista“, diz Deborah.

 

Com um território de 95 mil quilômetros quadrados, temos em Santa Catarina 28 áreas indígenas, as quais equivalem a 0,8% do solo barriga-verde. Ainda assim, o governo do Estado está empenhado na ação. O julgamento previsto para agosto servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça aos processos e procedimentos demarcatórios no país.

 

Se a maioria do STF não seguir o voto do ministro Fachin (não acolheu o marco temporal), o futuro dos índios brasileiros poderá estar diante de mais uma grande ameaça. Mas não é o que espera Deborah Duprat:  

 

Não conto com a possibilidade de o STF negar validade ao texto constitucional“.

 

Linha do tempo sobre o caso

 

> Marco temporal

 

O “marco temporal” faz parte de uma ação que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) defendendo que povos indígenas só possam reivindicar terras se estivessem sobre essas em 5/10/1988, quando entrou em vigor a Constituição.

 

> A disputa

 

De um lado, está a bancada ruralista e instituições ligadas à agropecuária defendendo o marco. Do outro, povos indígenas que temem perder direito a áreas em processo de demarcação.

 

> Como é hoje a definição de terra indígena

 

A Constituição Brasileira garante a criação de Terras Indígenas (TIs) no artigo 231. O parágrafo quarto define que as terras são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. Pela lei, o direito dos índios ao território é exclusivo e permanente e cabe a eles s explorar seus recursos naturais e desenvolver suas culturas. Também podem ser habitadas por uma ou mais etnias.

 

> Quem cuida do processo de demarcação

 

Cabe a Fundação Nacional do Índio (Funai) dar início ao processo de demarcação das terras indígenas por meio de um procedimento administrativo baseado em requisitos legais e técnicos. Cabe a presidência da República, por meio de decreto presidencial, tratar da retirada de ocupantes não índios e pagamento das indenizações. Além desse pagamento, é responsabilidade do INCRA fazer o reassentamento dos ocupantes não-índios que se enquadrem no perfil da reforma agrária.

 

> Quantas são

 

De acordo com a Funai, existem 732 territórios indígenas em diferentes fases. Mas algumas Instituições e ONGS indicam outros números, porque consideram as “terras sem índios”, ou seja, aquelas que nem começaram o processo de demarcação pela FUNAI. O Conselho Indigenista Missionário, o CIMI, sugere a existência de 1.296 terras indígenas no Brasil, sendo que 63,3% delas não tiveram quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos do Estado, permanecendo casos de ‘índios sem-terra’.

 

> Na Justiça

 

Em 2017, no governo Michel Temer, a Advocacia-geral da União emitiu um parecer onde entedia que o julgamento de um caso específico de uma Terra Indígena valia para todos os outros. No caso, o exemplo dado foi o do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, alvo de disputa entre índios e arrozeiros. O caso tinha ido parar no STF que, em 2009, resolve a questão alegando que a terra pertencia aos indígenas por lá estarem quando foi promulgada a Constituição Federal. Mas a medida tomada pela AGU contraria o entendimento do próprio STF. Em 2013, a corte reconheceu que o julgamento da Raposa Serra do Sol servia somente àquele caso. 

 

> O fato catarinense

 

A Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma) decidiu usar o parecer da AGU como argumento para reivindicar posse de uma área ocupada pelos Xokleng. De acordo com documentos, em 1914, na primeira vez em que foram localizados, os índios foram “aldeados” em uma pequena porção de terra do Rio Platê para impedir que fossem dizimados. Apesar disso, no início dos anos 1930, os Xokleng que tinham sido encontrados em cerca de 400, eram apenas 100 pessoas. A Procuradoria do Governo do Estado de Santa Catarina foi à Justiça para cancelar a demarcação. O processo chegou ao STF, tendo como base a tese do marco temporal.

 

> A construção da barragem

 

Em 1976, o governo federal decidiu pela construção da Barragem Norte, no município de José Boiteux. Maior estrutura do tipo no país, foi construída para evitar cheias em municípios do Vale do Itajaí. Ocorre que a barragem e a zona de impacto estão dentro dos 14 mil hectares remanescentes de todo o esbulho promovido no decorrer do século XX no território tradicional Xokleng. Por isso os Xokleng reivindicaram para a Funai a demarcação dos 37 mil hectares (com os 14 mil inclusos). Os Xokleng dizem que terras pertencentes a eles foram vendidas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e se utilizam de marcos, como cemitérios na Serra da Abelha, e que estão fora dos 37 mil, para provar. Para eles, quem comprou as áreas deve ser indenizado pelo próprio governo. 

 

> Vítimas de grilagem

 

A Funai montou grupo de estudos para criar uma Terra Indígena, que uniria os Xokleng e mais povos, contabilizando mais de 2 mil indígenas. A instituição identificou que, historicamente, os Xokleng foram expulsos e vítimas de grilagem. 

 

> PGE recorre ao STF

 

O processo de criação da Terra Indígena está parado desde 2003, devido a ações na Justiça. Apesar do que defende a Funai, a Frente Parlamentar da Agropecuária utiliza o parecer emitido pela AGU para entrar com ações contra demarcação de novas TIs. O MPF estima em 27 os processos de demarcações parados devido ao parecer da AGU.

 

> O voto de Fachin

 

O STF retomará dia 25 de agosto o julgamento sobre a tese do “marco temporal”. Outro ponto em discussão é se o reconhecimento de uma área como território indígena depende da conclusão de processo administrativo de demarcação. O julgamento foi interrompido no dia 11 de junho, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu destaque. O relator, ministro Edson Fachin, já havia divulgado voto e foi contrário à demarcação do marco temporal.


POR: ÂNGELA BASTOS – JORNAL DE SANTA CATARINA / NSC TOTAL

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